quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

LILA, A BEM AMADA

= LILA, A BEM AMADA =

A tarde mormacenta era um convite à preguiça. O sol forte de agosto batia de frente na janela do quarto de Robertinho, que, sentado defronte à sua rústica escrivaninha, tentava inutilmente decorar algumas regras de latim.
— Puxa vida... se não decoro essa declinação, não vou poder devolver o gibi pra Lila... — devaneava o garoto, ansioso por fechar o livro, pegar a revistinha de quadrinhos e encontrar com sua amiguinha dileta.
A mãe estava fazendo crochê na sala de jantar, e, por tabela, vigiava o estudo de Robertinho. Mas era uma vigilância pró-forma, pois o filho era esforçado, sempre obtinha boas notas no ginásio e tinha certas liberdades.
Mas latim...Ah!- o latim era o pavor de Robertinho, que não conseguia meter dentro da cachola as declinações, os verbos, o vocabulário...
— Bem, vou parar por aqui.
Pegando os gibis que estavam na gaveta ao lado, jogou-os janela afora, saindo depressa do quarto. Passou pela mãe:
— Onde é que você pensa que vai?
— Vou ali na esquina, já volto, dois minutinhos, tá bom? —Falou, enquanto corria para a porta de saída.
— Tá bem, mas volta logo, hein?
Correndo até a calçada, apanhou os dois gibis (de cuja existência sua mãe suspeitava, e tolerava). “Graças a Deus não passou ninguém por aqui, agora” e disparou rumo ao Jardim Novo.
Quando chegou ao local de encontro marcado com Lila, debaixo da velha figueira, Robertinho se decepcionou:
— Puxa vida, eu me esforço pra chegar na hora e Lila sempre se atrasando . . . — Assim pensando, sentou-se sobre a relva. Folheou um dos três gibis que trouxera para devolver a Lila.
Enquanto revia algumas páginas ia pensando como Lila não se importava com seus gibis, ao contrário dele, Robertinho , que tinha o maior cuidado e carinho com suas revistas. Lila nem se incomodava se Robertinho devolvia ou não as revistas emprestadas. Também, a garota era rica, tinha de tudo, sua mesada dava pra comprar uns 10 gibis por mês, enquanto ele podia comprar apenas um gibi: assim mesmo, sem que seu pai soubesse.
O calor aumentava, a tarde ia esquentando. Já eram quase 4 horas. Uma lagarta devorava metodicamente uma folha, causando um efeito hipnótico sobre Robertinho, que foi cedendo ao mormaço. Logo começou a cochilar.
Foi assim, Completamente desligado, que Lila o encontrou, ao abrigo da sombra densa proporcionada pela velha figueira, escondido pelos arbustos artisticamente dispostos em círculo, fazendo do local um pequeno esconderijo.
Lila chegou devagar. Era uma garota desenvolvida para seus 12 anos. Um tipo, essa Lila. Também freqüentava o ginásio, mas na terceira série, bem à frente de Robertinho, que estava na primeira .
— Ei, garoto, levanta daí. . . 'cê veio aqui pra conversar ou pra dormir?
Assustado, Robertinho acordou, abrindo os olhos e mirando o perfil de Lila contra o sol, fazendo-lhe sombra, tirando-lhe Completamente a visão de qualquer coisa além do corpo da menina.
Lila já se revelava bonita mocinha. Robertinho tinha observado as grossas coxas e os peitinhos eriçando a blusa. Além do rosto largo, as maçãs do rosto marcando a feição, os lábios carnudos, e os cabelos...Ah! os cabelos... Era uma ruiva “daquelas”, e os cabelos caíam como cascatas de sua cabeça, longos cabelos que de tão ruivos chegavam a ser avermelhados...
Sentando-se, balbuciou um pouco sem graça:
— Oi...vim lhe trazer seus gibis e me deu um sono danado, acabei cochilando.
— Num tem importância. Eu também fiquei com uma vontade de deitar aí com você.
— Olha, ‘tou te devolvendo os 2 gibis que você me emprestou e trouxe um que comprei ontem e já li.
Calmamente, ela sentou-se ao lado de Robertinho, pegou os gibis e começou a folhear um deles. Teve o cuidado de sentar-se bem perto de Robertinho, de forma que o garoto sentiu de imediato suas coxas quentes. Deixou-se ficar. Sabia de antemão o que ia suceder.
Confirmando suas expectativas, Lila, como que por descuido, deixou a mão esquerda descansar sobre as pernas do colega, falando à-toa, assim como quem não quer nada:
— Oba!, aqui tem uma aventura do Capitão Marvel Jr., adoro suas histórias!
— É, essa aí é muito boa mesmo, é o Capitão Marvel contra o Capitão Nazi.
Sentia um ardor nas faces, um desconforto enorme crescendo entre suas pernas, e o braço da garota fazendo pressão... De repente, Lila levanta-se, corre até o tronco da figueira.
— Amanhã te devolvo o gibi, tá bom?
Robertinho também se levanta, porém muito encabulado, envergonhado até, sentindo uma vontade enorme de correr atrás da menina, mas se contendo. Concordando.
— Até...
Ao entrar em casa, Lila encontra-se com a mãe, que a interpela duramente:
— Então, continua nessa história de ler gibi, hein? Passa pra cá essas revistas e vai estudar, antes que eu conte tudo pro seu pai.
Lila se esquiva , corre para o interior da casa rumo ao seu quarto. Entra e tranca a porta.
Dona Margarida não se conforma com os modos da filha. É respondona e a afronta quando lhe pergunta alguma coisa ou lhe dá alguma ordem. Não estuda, suas notas são suficientes apenas para não “tomar bomba”, nada mais do que as notas mínimas exigidas.
Nos últimos meses, então, tem-se revelado muito dona de si, passa grande parte do tempo trancada em seu quarto, cheia de mistérios e, ainda por cima, compra esses malditos gibis, revistas de bandidos e criminosos, cheias de violência, um horror, um veneno para as crianças.
Ah! que diferença daquela Lila tão meiga e tão obediente de alguns tempos atrás. Tanto ela, a mãe, quanto o pai, o simples e calmo Nonato, tinham um amor extremado por Lila. Não podia ser de outra forma, pois a garota era a própria razão de ser do casal.
Lila era a alegria da casa, alegre, espontânea, cantava muito, gostava de ajudar a mãe nas simples tarefas de casa. Quando o pai chegava do escritório de contador, era com os braços abertos que se atirava ao seu pescoço , cobrindo-o de beijos.
Nonato fazia de tudo pela família: era uma devoção com a esposa, Margarida, à qual cumulava de presentes, procurando distraí-la. Saíam quase todas as noites, a visitar parentes. Às quartas-feiras e domingos iam ao cinema, traziam-lhe revistas, caixas de bombons, assim, sem motivo senão a manifestação de amor.
Para Lila, então, o chamego ia mais longe: dava-lhe tudo o que lhe pedia. Roupas novas, dinheiro, levava-a a passear todos os domingos: à sorveteria, ao Clube dos Aristocratas quando havia baile ou mesmo às reuniões dançantes de meio da semana. Ensinou-a a dançar e tinha o maior orgulho em deslizar com a garota, salão afora, geralmente “inaugurando” o baile, como gostava de dizer.
Ela era a sua “bem-amada”. Era também a queridinha da mãe. Filha única, objeto de todas as atenções do casal, que levavam os dias numa harmonia sem fim ,invejada por muitas vizinhas e conhecidas.
Mas, ultimamente, quanta mudança... Lila ficava amuada por qualquer coisa, uma observação, uma palavrinha de censura já punha a menina emburrada.
Depois que começou a ler esses malditos gibis, piorara. Até suas amiguinhas estavam se afastando, Dona Margarida notava... Que coisa, essa história de ficar trocando gibis com os garotos da vizinhança. Toda tarde tinha um ou outro garoto procurando Lila pra devolver ou tomar uma revistinha emprestada.
Nonato nada dizia, passava o dia inteiro no seu escritório, vinha almoçar em casa. Não queria saber das preocupações de Margarida: era só afagos, beijos e carinhos para ambas.
Na imaginação, Dona Margarida chegava até a pensar que Lila sabia de alguma coisa, será que alguém tinha falado com ela, será...?
Assim passavam dias, semanas. Robertinho já quase esquecido da ocasião em que conhecera Lila, por um acaso. Foi ali mesmo, no Jardim Novo. Ela morava na casa ao lado da padaria, onde ele ia todas as tardes comprar pão. Numa dessas idas, Robertinho levava debaixo do braço um gibi antigo, para trocar com o Jacinto, aproveitando a ida à padaria. Na pequena loja de pães e quitandas, a menina, entrevendo o gibi, perguntou-lhe:
— Você gosta de ler gibi? Eu adoro...
E dali pra frente, começou essa inocente amizade. Mas aquele sentimento de pura amizade se transformava rapidamente. Nas últimas vezes em que se encontraram, Lila e Robertinho ficavam cada vez mais juntos, seus corpos se tocando. Aquela maneira estranha de Lila se afastar repentinamente, quando Robertinho mais apreciava a proximidade, quando mais ele gostaria de permanecer ali, naquela intimidade...
De repente, tudo adquiriu um novo ritmo. Robertinho sentiu que Lila não mais se interessava por gibis, os encontros foram rareando. Por ocasião dos exames de fim de ano, a garota deixou definitivamente de aparecer no Jardim Novo.
Procurá-la em casa, nem pensar. Robertinho sabia que Dona Margarida não gostava de que Lila lesse gibis, já tinha até queimado algumas revistas. Não havia um pretexto para bater na porta da casa, ali tão pertinho do recanto sob a figueira, do outro lado da rua, defronte a calçada do Jardim Novo.
Passaram as semanas de exame, vieram as férias: Robertinho nunca mais viu Lila nem dela ouviu falar. Aliás, ouvir falar, ouviu sim. Numa noite, já próxima do Natal, estando deitado, escutou sem querer sua mãe conversar com o pai, na sala de visitas. Ficou alerta ao ouvir o nome mágico de Lila pronunciado pela mãe.
— Hoje de manhã Dona Margarida esteve aqui em casa, coitada, toda chorosa. Como deve estar sofrendo com a falta da Lila.
— Mas, afinal, o que aconteceu com a menina? perguntou o pai, sem muito interesse.
— Uma calamidade. Fugiu de casa, desapareceu, sem deixar um aviso, sem falar nada com ninguém. Tenho tanta pena de Dona Margarida, do Nonato. Eles foram tão bons pra Lila... Imagine, criaram a moça com tanto amor, tanto carinho. Desde o dia em que a adotaram, nunca deixaram faltar nada pra menina... E agora, esta tragédia...
— Que mistério é esse da fuga de Lila?
— Não têm certeza, mas desconfiam. Você sabe, eles nunca falaram pra ela que era filha adotiva. Então...
— Filha adotiva?
— Pois é, pouca gente sabia. Eu mesmo sabia porque Dona Margarida vinha sempre aqui em casa, você sabe, eu fazia muitas toalhinhas de crochê pra ela. Falava muito da Lila e do Nonato também... Ela me contou que adotaram Lila na Maternidade, quando uma mulher da zona deu à luz, deixou a criança no berçário, sumiu. Nonato era contador do hospital, ficou sabendo do abandono. Ele mais Dona Margarida resolveram adotar o bebê...
— Por isso é que Lila era uma menina bem diferente de ambos...Ruiva daquele jeito e também muito diferente nos modos...
— Não foi só isso, não. A mãe, quer dizer, a puta ainda teve o desplante de escrever pro Nonato mandar-lhe dinheiro umas duas ou três vezes, sob a ameaça de revelar pra garota quem era a verdadeira mãe. Nonato, claro, mandou o dinheiro que a prostituta pedira...
— Pura chantagem...
— Pois é. Mas, numa situação dessa, quem é que faria de outro jeito?
— E o paradeiro da menina, descobriram?
— Nonato esteve em S. Paulo na semana passada, teve notícias dela. Com muito custo, encontrou a garota...está morando com a mãe...num prostíbulo lá para as bandas da Vila Mariana...
* * * *


ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE - Setembro de 1999
Conto # 2 da Série Milistórias

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