quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
LILA, A BEM AMADA
A tarde mormacenta era um convite à preguiça. O sol forte de agosto batia de frente na janela do quarto de Robertinho, que, sentado defronte à sua rústica escrivaninha, tentava inutilmente decorar algumas regras de latim.
— Puxa vida... se não decoro essa declinação, não vou poder devolver o gibi pra Lila... — devaneava o garoto, ansioso por fechar o livro, pegar a revistinha de quadrinhos e encontrar com sua amiguinha dileta.
A mãe estava fazendo crochê na sala de jantar, e, por tabela, vigiava o estudo de Robertinho. Mas era uma vigilância pró-forma, pois o filho era esforçado, sempre obtinha boas notas no ginásio e tinha certas liberdades.
Mas latim...Ah!- o latim era o pavor de Robertinho, que não conseguia meter dentro da cachola as declinações, os verbos, o vocabulário...
— Bem, vou parar por aqui.
Pegando os gibis que estavam na gaveta ao lado, jogou-os janela afora, saindo depressa do quarto. Passou pela mãe:
— Onde é que você pensa que vai?
— Vou ali na esquina, já volto, dois minutinhos, tá bom? —Falou, enquanto corria para a porta de saída.
— Tá bem, mas volta logo, hein?
Correndo até a calçada, apanhou os dois gibis (de cuja existência sua mãe suspeitava, e tolerava). “Graças a Deus não passou ninguém por aqui, agora” e disparou rumo ao Jardim Novo.
Quando chegou ao local de encontro marcado com Lila, debaixo da velha figueira, Robertinho se decepcionou:
— Puxa vida, eu me esforço pra chegar na hora e Lila sempre se atrasando . . . — Assim pensando, sentou-se sobre a relva. Folheou um dos três gibis que trouxera para devolver a Lila.
Enquanto revia algumas páginas ia pensando como Lila não se importava com seus gibis, ao contrário dele, Robertinho , que tinha o maior cuidado e carinho com suas revistas. Lila nem se incomodava se Robertinho devolvia ou não as revistas emprestadas. Também, a garota era rica, tinha de tudo, sua mesada dava pra comprar uns 10 gibis por mês, enquanto ele podia comprar apenas um gibi: assim mesmo, sem que seu pai soubesse.
O calor aumentava, a tarde ia esquentando. Já eram quase 4 horas. Uma lagarta devorava metodicamente uma folha, causando um efeito hipnótico sobre Robertinho, que foi cedendo ao mormaço. Logo começou a cochilar.
Foi assim, Completamente desligado, que Lila o encontrou, ao abrigo da sombra densa proporcionada pela velha figueira, escondido pelos arbustos artisticamente dispostos em círculo, fazendo do local um pequeno esconderijo.
Lila chegou devagar. Era uma garota desenvolvida para seus 12 anos. Um tipo, essa Lila. Também freqüentava o ginásio, mas na terceira série, bem à frente de Robertinho, que estava na primeira .
— Ei, garoto, levanta daí. . . 'cê veio aqui pra conversar ou pra dormir?
Assustado, Robertinho acordou, abrindo os olhos e mirando o perfil de Lila contra o sol, fazendo-lhe sombra, tirando-lhe Completamente a visão de qualquer coisa além do corpo da menina.
Lila já se revelava bonita mocinha. Robertinho tinha observado as grossas coxas e os peitinhos eriçando a blusa. Além do rosto largo, as maçãs do rosto marcando a feição, os lábios carnudos, e os cabelos...Ah! os cabelos... Era uma ruiva “daquelas”, e os cabelos caíam como cascatas de sua cabeça, longos cabelos que de tão ruivos chegavam a ser avermelhados...
Sentando-se, balbuciou um pouco sem graça:
— Oi...vim lhe trazer seus gibis e me deu um sono danado, acabei cochilando.
— Num tem importância. Eu também fiquei com uma vontade de deitar aí com você.
— Olha, ‘tou te devolvendo os 2 gibis que você me emprestou e trouxe um que comprei ontem e já li.
Calmamente, ela sentou-se ao lado de Robertinho, pegou os gibis e começou a folhear um deles. Teve o cuidado de sentar-se bem perto de Robertinho, de forma que o garoto sentiu de imediato suas coxas quentes. Deixou-se ficar. Sabia de antemão o que ia suceder.
Confirmando suas expectativas, Lila, como que por descuido, deixou a mão esquerda descansar sobre as pernas do colega, falando à-toa, assim como quem não quer nada:
— Oba!, aqui tem uma aventura do Capitão Marvel Jr., adoro suas histórias!
— É, essa aí é muito boa mesmo, é o Capitão Marvel contra o Capitão Nazi.
Sentia um ardor nas faces, um desconforto enorme crescendo entre suas pernas, e o braço da garota fazendo pressão... De repente, Lila levanta-se, corre até o tronco da figueira.
— Amanhã te devolvo o gibi, tá bom?
Robertinho também se levanta, porém muito encabulado, envergonhado até, sentindo uma vontade enorme de correr atrás da menina, mas se contendo. Concordando.
— Até...
Ao entrar em casa, Lila encontra-se com a mãe, que a interpela duramente:
— Então, continua nessa história de ler gibi, hein? Passa pra cá essas revistas e vai estudar, antes que eu conte tudo pro seu pai.
Lila se esquiva , corre para o interior da casa rumo ao seu quarto. Entra e tranca a porta.
Dona Margarida não se conforma com os modos da filha. É respondona e a afronta quando lhe pergunta alguma coisa ou lhe dá alguma ordem. Não estuda, suas notas são suficientes apenas para não “tomar bomba”, nada mais do que as notas mínimas exigidas.
Nos últimos meses, então, tem-se revelado muito dona de si, passa grande parte do tempo trancada em seu quarto, cheia de mistérios e, ainda por cima, compra esses malditos gibis, revistas de bandidos e criminosos, cheias de violência, um horror, um veneno para as crianças.
Ah! que diferença daquela Lila tão meiga e tão obediente de alguns tempos atrás. Tanto ela, a mãe, quanto o pai, o simples e calmo Nonato, tinham um amor extremado por Lila. Não podia ser de outra forma, pois a garota era a própria razão de ser do casal.
Lila era a alegria da casa, alegre, espontânea, cantava muito, gostava de ajudar a mãe nas simples tarefas de casa. Quando o pai chegava do escritório de contador, era com os braços abertos que se atirava ao seu pescoço , cobrindo-o de beijos.
Nonato fazia de tudo pela família: era uma devoção com a esposa, Margarida, à qual cumulava de presentes, procurando distraí-la. Saíam quase todas as noites, a visitar parentes. Às quartas-feiras e domingos iam ao cinema, traziam-lhe revistas, caixas de bombons, assim, sem motivo senão a manifestação de amor.
Para Lila, então, o chamego ia mais longe: dava-lhe tudo o que lhe pedia. Roupas novas, dinheiro, levava-a a passear todos os domingos: à sorveteria, ao Clube dos Aristocratas quando havia baile ou mesmo às reuniões dançantes de meio da semana. Ensinou-a a dançar e tinha o maior orgulho em deslizar com a garota, salão afora, geralmente “inaugurando” o baile, como gostava de dizer.
Ela era a sua “bem-amada”. Era também a queridinha da mãe. Filha única, objeto de todas as atenções do casal, que levavam os dias numa harmonia sem fim ,invejada por muitas vizinhas e conhecidas.
Mas, ultimamente, quanta mudança... Lila ficava amuada por qualquer coisa, uma observação, uma palavrinha de censura já punha a menina emburrada.
Depois que começou a ler esses malditos gibis, piorara. Até suas amiguinhas estavam se afastando, Dona Margarida notava... Que coisa, essa história de ficar trocando gibis com os garotos da vizinhança. Toda tarde tinha um ou outro garoto procurando Lila pra devolver ou tomar uma revistinha emprestada.
Nonato nada dizia, passava o dia inteiro no seu escritório, vinha almoçar em casa. Não queria saber das preocupações de Margarida: era só afagos, beijos e carinhos para ambas.
Na imaginação, Dona Margarida chegava até a pensar que Lila sabia de alguma coisa, será que alguém tinha falado com ela, será...?
Assim passavam dias, semanas. Robertinho já quase esquecido da ocasião em que conhecera Lila, por um acaso. Foi ali mesmo, no Jardim Novo. Ela morava na casa ao lado da padaria, onde ele ia todas as tardes comprar pão. Numa dessas idas, Robertinho levava debaixo do braço um gibi antigo, para trocar com o Jacinto, aproveitando a ida à padaria. Na pequena loja de pães e quitandas, a menina, entrevendo o gibi, perguntou-lhe:
— Você gosta de ler gibi? Eu adoro...
E dali pra frente, começou essa inocente amizade. Mas aquele sentimento de pura amizade se transformava rapidamente. Nas últimas vezes em que se encontraram, Lila e Robertinho ficavam cada vez mais juntos, seus corpos se tocando. Aquela maneira estranha de Lila se afastar repentinamente, quando Robertinho mais apreciava a proximidade, quando mais ele gostaria de permanecer ali, naquela intimidade...
De repente, tudo adquiriu um novo ritmo. Robertinho sentiu que Lila não mais se interessava por gibis, os encontros foram rareando. Por ocasião dos exames de fim de ano, a garota deixou definitivamente de aparecer no Jardim Novo.
Procurá-la em casa, nem pensar. Robertinho sabia que Dona Margarida não gostava de que Lila lesse gibis, já tinha até queimado algumas revistas. Não havia um pretexto para bater na porta da casa, ali tão pertinho do recanto sob a figueira, do outro lado da rua, defronte a calçada do Jardim Novo.
Passaram as semanas de exame, vieram as férias: Robertinho nunca mais viu Lila nem dela ouviu falar. Aliás, ouvir falar, ouviu sim. Numa noite, já próxima do Natal, estando deitado, escutou sem querer sua mãe conversar com o pai, na sala de visitas. Ficou alerta ao ouvir o nome mágico de Lila pronunciado pela mãe.
— Hoje de manhã Dona Margarida esteve aqui em casa, coitada, toda chorosa. Como deve estar sofrendo com a falta da Lila.
— Mas, afinal, o que aconteceu com a menina? perguntou o pai, sem muito interesse.
— Uma calamidade. Fugiu de casa, desapareceu, sem deixar um aviso, sem falar nada com ninguém. Tenho tanta pena de Dona Margarida, do Nonato. Eles foram tão bons pra Lila... Imagine, criaram a moça com tanto amor, tanto carinho. Desde o dia em que a adotaram, nunca deixaram faltar nada pra menina... E agora, esta tragédia...
— Que mistério é esse da fuga de Lila?
— Não têm certeza, mas desconfiam. Você sabe, eles nunca falaram pra ela que era filha adotiva. Então...
— Filha adotiva?
— Pois é, pouca gente sabia. Eu mesmo sabia porque Dona Margarida vinha sempre aqui em casa, você sabe, eu fazia muitas toalhinhas de crochê pra ela. Falava muito da Lila e do Nonato também... Ela me contou que adotaram Lila na Maternidade, quando uma mulher da zona deu à luz, deixou a criança no berçário, sumiu. Nonato era contador do hospital, ficou sabendo do abandono. Ele mais Dona Margarida resolveram adotar o bebê...
— Por isso é que Lila era uma menina bem diferente de ambos...Ruiva daquele jeito e também muito diferente nos modos...
— Não foi só isso, não. A mãe, quer dizer, a puta ainda teve o desplante de escrever pro Nonato mandar-lhe dinheiro umas duas ou três vezes, sob a ameaça de revelar pra garota quem era a verdadeira mãe. Nonato, claro, mandou o dinheiro que a prostituta pedira...
— Pura chantagem...
— Pois é. Mas, numa situação dessa, quem é que faria de outro jeito?
— E o paradeiro da menina, descobriram?
— Nonato esteve em S. Paulo na semana passada, teve notícias dela. Com muito custo, encontrou a garota...está morando com a mãe...num prostíbulo lá para as bandas da Vila Mariana...
* * * *
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE - Setembro de 1999
Conto # 2 da Série Milistórias
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
AVENTURA HIPPIE - # 50 da Série Milistórias
— Vem, vamos ficar debaixo daquela árvore. — Marta fala com Doris, a ruivinha. — Diana fica aqui na beira da estrada.
O sol inclemente batia sobre a caatinga, a rodovia e as três jovens. Marta e Diana, morenas, não se incomodavam muito com o calor, mas Doris, uma ruiva de cútis clara, não gostava nada de ficar exposta aos raios solares. Principalmente sob aquele sol das três da tarde, quentíssimo, a cuja ação ajuntava-se a poeira. Um veneno para a cútis e os braços expostos.
Estavam viajando há quatro semanas, sempre de carona. Saíram de São Paulo, subiram pelo litoral, visitando as praias mais bonitas do mundo. Passaram por Salvador, Maceió, Recife, Natal, chegaram em Fortaleza. Uma aventura planejada durante todo o tempo de faculdade. Presente de formatura que elas estavam se dando.
Uma nuvem de poeira na estrada, bem longe, anuncia um veículo. Diana fica atenta. Ao se aproximar a camioneta, agita freneticamente o braço, mão direita com polegar erguido, o sinal conhecido usado pelos caroneiros no mundo inteiro. Precisamos urgente de uma carona, Antes que anoiteça, pensa.
O veículo diminui a velocidade e pára próximo da jovem, envolvendo-a numa nuvem de pó avermelhado. É uma camioneta nova, ano 65 ou 64, de cabina simples, onde estão o chofer e um casal de jovens. Na carroceria de madeira estão mais três pessoas. Marta e Doris correm para a estrada, e chegam juntas para conversar com o motorista.
— Moço, cabem mais três aí?
— Se não se importarem de ir aí na carroceria.
Mais do que depressa as três moças jogam suas mochilas e sacolas pra dentro da carroceria, e espertamente sobem, ajudadas pelos dois jovens e a mulher que lá se encontram.
Acomodam-se como podem, sentando no chão de tábuas, entre as muitas sacolas e malotes que se amontoam. Cumprimentos, sorrisos, aquela alegria comum entre os jovens hippies.
— Então, donzelas, correndo o mundo? — Um dos moços puxa prosa. — Sou Alberto, aquel' outro é Dimas e a guria aqui é Dímitra. — O sotaque mostra logo tratar-se de um português, o que vem a se confirmar.
As três recém-chegadas se apresentam. Ficam sabendo que Alberto vem de Coimbra, Dimas é gaúcho e Dímitra, uma grega que pouco entende de português. O conhecimento é fácil, são todos caroneiros. O casal que viaja na cabine, junto com o chofer, também faz parte do grupo, os cinco estão viajando juntos.
— A gente já estava desanimada, passaram três veículos e nenhum parou pra nós. — Diana procura animar a conversa.
— Tem muito chofer medroso de dar carona. — Dimas entrou na conversa. — Ainda não estão acostumados. No meu estado é mais fácil, tem muita gente viajando de carona. Não só estudantes, mas pessoas de idade já estão curtindo esse jeito de viajar. Pra onde vocês vão?
— Somos de São Paulo. Eestamos voltando pra casa. Queremos ir até Terezina, depois vamos pra Brasília e de lá chegamos a S. Paulo. — explicou Doris, ajeitando seus cabelos acobreados, amarrando-os com uma fita vermelha.
— É muito distante, um longo trecho, pois não? - indaga Alberto.
— Mais de dois mil quilômetros. E vamos passar pelo interior do Maranhão, que é uma região ainda bem selvagem. Mas vale a pena! — Ainda é Doris quem responde.
A estrada vai piorando. Poeira fina o tempo todo. Os buracos fazem a camioneta corcovear. O motorista procurar desviar das "crateras" na estrada, com guinadas na direção, para a esquerda e para a direita. Mas não tira o pé do acelerador. Os viajantes agarram-se às tábuas laterais da carroceria. Todos reclamam, até a moça grega, em inglês e no seu idioma pátrio.
Parece estar deslocada ali, no meio dos brasileiros e do português, todos conversando entre si. Fala pouco, monossílabos, só responde ao que lhe é perguntado. É companheira de Alberto, namorada ou coisa assim. De vez em quando trocam olhares especiais, apertos de mãos e, quando a camioneta corre suave, se beijam rapidamente. Mesmo sentada, dá pra notar que é alta, cabelos compridos muito pretos, soltos, bem ao estilo das hippies. Corpo atlético, forte. Usa shorts e as pernas são queimadas de sol. Parece mais uma cigana, com olhos negros e lábios finos.
— Where are we going to? — pergunta, entre um solavanco e outro.
Alberto explica-lhe em inglês e em seguida, educadamente, relata o diálogo para os outros:
— Disse-lhe que estamos indo para Terezina e que temos ainda uns 200 quilômetros pela frente, antes de chegar. Só vamos chegar bem de noite.
Após duas horas ou mais de viagem, o sol já estava bem baixo no horizonte, quando o motorista estaciona a camioneta sob um enorme cajueiro, ao lado de miserável bitácula beira-estrada. Desceram todos, batendo o pó das roupas, esfregando as mãos nos cabelos.
— Parada pra espichar as pernas! — Anunciou o motorista, senhor alegre e comunicativo que se apresentou: chamava-se Heraldo, era comerciante e viajante habitual por aquelas paragens. — Vamos tomar uma água e refrescar um pouco. Aproveitem porque daqui pra frente são mais duas horas e só vamos parar na capital.
De volta à estrada, continuou o tormento do balanço e das bacadas, os buracos e as costelas aumentando sempre, e a velocidade constante.
— Que' strada miserável, pois! Raios que a partam! — Alberto não se conteve em soltar uma blasfêmia.
Dímitra quietamente ajeitou algumas sacolas e sua própria maleta, preparou um lugar para ficar deitada. Não ficou mais confortável que os demais, porém parece que se deu bem e puxou um cochilo. Estavam todos modorrentos, o sol já se fora, era a hora do lusco-fusco. Quando a camioneta, passando por um buraco maior, deu um tremendo solavanco, todos foram jogados para cima.
— Aaaaaaaai !!! — Ouviu-se um grito, vinha de Dímitra, agora, mais do que deitada, estava estendida no chão de madeira, estatelada. — Aiiiii, ai-ai-ai-aaaaaai ! ! ! — continuava gritando.
Os companheiros assustados não sabiam porque a moça grega gritava tanto. Alberto passou o braço sob sua nuca, tentou levantá-la, mas o berreiro se intensificou. Deixou sua cabeça apoiada numa maleta. Dimas batia desesperadamente sobre a cabine, chamando a atenção do motorista,que logo percebeu que alguma coisa acontecera na carroceira. Encostou o veículo. Desceu rápido.
— Que aconteceu? Que foi? Alguém se machucou?
Dímitra, imóvel, continuava gritando. Não mexia sequer a cabeça, olhava fixamente para o céu. Heraldo subiu lesto na carroceira, tentou falar com a grega, não foi entendido. Procurou levantar sua cabeça, como Alberto já fizera, e os gritos de dor aumentaram.
— Alguém aqui é medico ou enfermeira?
Ninguém era. Nem de massagens eles entendiam. E Dímitra gritando.
— Não adianta mexer com ela, tem alguma fratura. Menina - dirigiu-se a Doris — examine as pernas, coxas e pés, vê se acha algum ferimento, fratura. — Ao mesmo tempo que ordenava, Heraldo foi apalpando as mãos, braços, antebraços, ombros, o tórax. Quando tocou as costelas, os gritos pioraram. Apalpando delicadamente, nada sentiu que pudesse indicar fratura.
— Aqui nas pernas e nos pés não sinto nada de anormal. — Informou Doris, após fazer o exame rápido determinado por Heraldo.
Tentou levantar novamente a cabeça, novamente recrudesceram os gritos.
— Alguém tem aí um analgésico, um Melhoral, coisa assim? - Heraldo parecia estar familiarizado com emergências. Apareceram diversos comprimidos, e um cantil d'água. Fizeram Dímitra tomar três comprimidos, que ela engoliu com dificuldade, entre gritos de dor.
Heraldo fechou o cenho.
— Não estou gostando. Ela tem alguma fratura, não pode mexer de jeito nenhum. Vamos acomodá-la da melhor forma possível. Ela tem de ficar deitada. Vamos pôr casacos, agasalhos, tudo que for macio por baixo, mas sem mexer muito com ela. E o jeito é ir dirigindo bem devagar, até chegar à capital. Ainda temos uns 50 quilômetros e sem nenhum recurso ao longo da estrada.
E assim foi. Os comprimidos tiveram pouco efeito, Dímitra passou dos gritos aos gemidos, mas sentia qualquer baque, qualquer balanço do carro. Doris e Diana deitaram-se ao lado de Dímitra, a fim de firmarem, com seus corpos, o corpo da grega. O percurso foi demorado, Heraldo dirigia com cuidado, e já era noite fechada, quase nove horas, quando finalmente conseguiram chegar ao pronto-socorro do Hospital Municipal de Terezina.
Heraldo, expedito, tratou do internamento da moça. Os companheiros - inclusive Diana, Doris e Marta esperaram na porta do pronto-socorro por uma notícia, um diagnóstico. Que veio sem tardança, trazido por Alberto:
— Ora pois, Dímitra teve a coluna vertebral fraturada! Não pode fazer nenhum movimento! Vamos ter de aguardar até amanhã para outros exames! — A tristeza e a preocupação abalaram profundamente o moço de Coimbra, e afetou a todos.
Ninguém quis procurar um hotel, albergue ou pensão, ficaram todos por ali mesmo, desorientados. Heraldo solidário com eles. Mas, que fazer?
— Bem, já que ninguém vai procurar pouso, vou fazer o seguinte. Encosto a camioneta aí na pracinha defronte o hospital, e vamos passar a noite aí mesmo. Cada qual se vira como pode.
Saindo da entrada do pronto-socorro, dirigiu o veículo para o outro lado da praça, estacionou em frente a um edifício alto, escuro, isolado dos demais.
— Aqui podemos ficar mais sossegados.
Alberto ficara no saguão do pronto-socorro. Dimas, Doris, Marta e Diana estenderam colchonetes na carroceria e deitaram-se. Suados, empoeirados e com calor, dispensaram mantas e cobertas. Doris puxou uma rede sobre seus pés. Haroldo recostou-se no banco da cabine, já estava acostumado a este desconforto.
O movimento do pronto-socorro continuou intenso até de madrugada, só amainando lá pelas quatro horas. Foi quando o pessoal da camioneta caiu num sono mais profundo.
Dimas foi o primeiro a acordar. O dia clareava. Preguiçosamente, olhou por entre as frestas da carroceria, e viu que o veículo estava cercado de curiosos, pessoas do local. Achou tudo muito estranho, e ficou com medo. Acordou num sussurro as garotas, avisando-as de que estavam cercados por pessoas em atitude que lhe dava preocupações. Marta olhou e também não gostou. Doris, ainda sonolenta, levantou-se num supetão, jogando a rede para o lado. Dimas, Marta e Diana também se levantaram.
A um só tempo, o povaréu que rodeava a camioneta correu, fugindo, gritando.
— Cruz credo, eles estão vivos! Foge, gente, é coisa do demo.
Heraldo saiu da cabine, surpreso com o tropel popular. Bestificado, olhou para um lado, para o outro, sem entender nada. Foi Dimas quem percebeu o motivo do terror que afugentou o pessoal. Rindo, indicou para Heraldo a fachada do edifício na frente do qual estavam. A camioneta com aqueles "corpos" na carroceira estava estacionada em frente ao um prédio anexo do hospital — e os curiosos do local tinham rodeado a camioneta pensando que ali estavam defuntos esperando a abertura do NECROTÉRIO.
ANTONIO ROQUE GOBBO- ARGOS - BELO HORIZONTE - 17 DE SETEMBRO DE 2000
Conto # 50 da Série Milistórias
sábado, 24 de janeiro de 2009
VADINHO VAI À VENDA
Uma lagartixa, Vadinho sai pela estreita porta da frente. Quando dá com o sol chapado, o menino se assusta com a claridade, modera o ímpeto. Ergue o braço, fazendo da mão esquerda um pára-sol. Segue em frente, obediente ao mandado da mãe.
Sabe da importância do leite para o irmãozinho, Lairson, que há dias está prostrado no seu bercinho, tomando as colherinhas de leite, puro ou misturado com um pouco de farinha de pau. Sem ânimo, nem mesmo chora mais, de tão fraquinho.
Caminha depressa pela senda seca e empoeirada. Não há mais sinal de grama nem capim, só umas moitas de mandacaru é que insistem em manter seus gomos espinhentos e amarelados, (a seca tá tanta que até o mandacaru tá morrendo ). O chão esturricado não tem nem mesmo sinal dos pezinhos de milho. Morreram quando estavam com palmo, palmo e meio de altura. Não tem mais nem sinal de estrada. O caminho que leva até o povoado desapareceu sob a camada de poeira. É tudo uma desolação, tudo amarelo, seco, pó em cima de pó.
Os pezinhos judiados, os calcanhares gretados, faz tempo que não tem água que chegue pra tomar banho, sequer refrescar os pés, as perninhas finas e expostas ao sol até às coxas. A calça é um resto de roupa rasgada e esgarçada, mal cobre suas vergonhas. Vai Vadinho, em busca do último alento para o irmão.
Passa em frente do pequeno cemitério do povoado, onde três pessoas estão ocupadas em fazer um enterro. Ainda é de manhã, e já estão enterrando o primeiro. Mais tarde, Vadinho já sabe, mais um ou dois enterros vão ser feitos. Todos de crianças. A morte anda rondando o povoado, levando consigo as crianças e até alguns velhos, dois, três por dia. Tem dia em que até quatro enterros acontecem.
Quer parar um pouco, ver, perguntar, saber de quem se trata. Não, tem de andar depressa com o leite. Depois, lá na venda, “seu” Tobias sabe de tudo. Vai lhe dizer quem morreu esta noite. É lá na venda , afinal, que todos têm de ir, em busca do caixão, para enterrarem seus mortos.
O sol da manhã é quente, muito quente, sobre a moleira de Vadinho. Passa a mão pela cabeça, na vã tentativa de afastar o calor. A boca está seca. Sente o estômago fundo. Já faz tempo que esta sensação está presente. É a fome crônica, durante todo o dia. Ultimamente, diversas vezes, à noite, quando acorda com umas pontadas na boca do estômago.
Chutando o pó, a sede e o calor, o menino chega em minutos ao povoado. Na verdade, uma fileira de casas enfileiradas ao rés-do-chão. Um renque de paredes de diversas cores, ocre, azul, verde, amarelo, as portas e janelas semi-cerradas algumas, a maioria fechadas. Ninguém na única rua, nenhum animal. Tudo deserto.
Amanhã de tarde, quando os trabalhadores (e o pai de Vadinho entre eles) voltarem da frente de trabalho, um pouco de animação voltará ao povoado. São poucas as famílias restantes, que persistem em ficar por ali. Todas dependem do trabalho da “frente”. Geralmente o pai e um ou dois filhos maiores voltam com o pagamento semanal, e fazem as compras, pagam as contas que as mulheres ficaram devendo na venda do “seu” Tobias. Única do povoado e da região, num raio de quilômetros e quilômetros.
Vadinho chega até a porta da venda, que já está aberta desde cedinho. “Seu” Tobias é madrugador, escancara a porta ao clarear do dia, num convite silencioso aos fregueses. Nada mais é que uma sala da casa de morada do proprietário. Parece enorme ao menino, um pouco por causa da exigüidade de sua própria casa, outro pouco devido aos escassos móveis da sala. Há o balcão-frigorífico, guardando as latinhas de guaraná, coca-cola, cervejas, poucos pacotes de alimentos refrigerados, caixinhas e saquinhos de leite de diversas marcas. Presas nas paredes, com parafusos e pregos, a metro e meio do chão, prateleiras de metal com outras poucas mercadorias: vidros de azeitona, latarias de doces, saquinhos de balas, garrafas de cachaça e outras bebidas “de homem macho”, tem até na prateleira superior meia dúzia de garrafas térmicas, empoeiradíssimas. Devem estar lá há anos...
De uma armação presa no teto, dependuram-se vassouras e rodos de lavar chão, também mostrando demorada permanência no local. Encostada na parede do fundo, ao lado da porta que faz a comunicação com as outras dependências da casa, uma vitrina estreita, de portas fechadas à chave, exibe brinquedos, pratos de louças, copos de vidro. Enfim, um capital investido há anos e que não tem saída, ultimamente.
Entretanto, o que mais chama a atenção de todos os freqüentadores da venda são os caixões. Sim, os caixões para enterrar pessoas. Vadinho sempre se assusta um pouco ao entrar na venda e dar logo de cara com aqueles três caixões encostados na parte da frente, antes do balcão-frigorífico: são três tamanhos diferentes, para crianças e adultos, e mais um pequenino, para criancinhas bem pequenas, para os “anjinhos”, este preso no alto da parede. Todos forrados de branco e com uma cruz de fita de seda, também branca, sobre a tampa.
São caixões toscos, feitos às pressas. Vadinho acha que o “seu” Tobias mesmo é quem os faz, lá nos fundos da sua loja. O pessoal já se acostumou com essa mistura de comércio, gêneros e bebidas para os vivos, ao lado das embalagens para a última viagem, a derradeira, a que só tem ida.
Vadinho sempre tem um estremecimento, um arrepio, ao passar pela coleção de caixões. Na venda, já estão Zenilda, garota de uns 15 anos, mirrada, de grandes pés metidos em “chinelos-de-dedos”. Sentada num canto, numa caixa vazia de sabão, os cabelos presos atrás por uma fitinha elástica, o rostinho queimado. Olhos vivos.
— Aí, Vadinho ?
— Oi, Zeni!
Apesar de brincarem juntos quase todos os dias, o vocabulário é curto, não têm muito o que dizer um ao outro. Na venda também está um menino. É o Zezinho da Dona Constança, uns 3 ou 4 anos mais velho que Vadinho, porém forte, crescido, bem desenvolvido. Senta-se folgadamente num banquinho de madeira, as costas apoiadas no balcão-frigorífico. Nem se dá ao trabalho de conversar.
Do fundo, chega “Seu” Tobias:
— Então, moleques, estão procurando trabalho? Aqui num tem não, trabalho só na lá na “frente”...— referindo-se à frente de trabalho, que só emprega adultos.
— Oi, “seu Tobias! A mãe mandou pedi pro senhor mandar um litro de leite. Põe na conta, qui amanhã pai chega e paga tudo.
— O leite acabô !
Vadinho olha para o balcão branco com vidros.
— Tem ali uma caixinha, a última.
— Tá passado, já azedô.
— Num faz mal, levo assim mesmo.
— Tá loco, menino, depois vocêis vão passar mal, ter piriri, e aí vão me botar a culpa de tudo...
— Mais a mãe mandô pedir...O Lair só tá bebendo leite. O nosso acabô ontem...
— Tá azedo, num vendo! – diz seu Tobias, dando a conversa por encerrada.
Mais depressa do que a vinda, volta Vadinho desanimado, mãos abanando. “ Talvez o leite não estivesse azedo, quem sabe...? “Seu” Tobias bem podia me vender a caixinha. Ela estava fechada. Como ele sabia que estava azedo? Acho que não quis me vender por outro motivo...”
Vadinho, esperto, dessa esperteza que as dificuldades avivam, tinha seus conhecimentos e tirava suas conclusões. “A Conta lá na venda tá alta, mas o “seu”Tobias podia me vender mais um litro de leite. E amanhã mesmo vem o Pai, com dinheiro, e paga ele...”
Passa de novo em frente ao cemitério, agora deserto. O pessoal já terminou o serviço do enterro. Não tem muito o que ver. É sempre aquela brancura no meio do amarelo, a cerquinha bem cuidada. ”Ô xente, o lugar dos mortos é mais cuidado que a cidade dos vivos”.
Chega em casa. Num safanão escancara a porta. Deixa entrar o sol, revelando a miséria do cômodo, que é, ao mesmo tempo, cozinha, lugar de comer , e de por as redes de dormir. Já faz tempo, a casa tinha dois cômodos, mas a parede dos fundos do quarto caiu e o pai não teve como consertar. Passaram a dormir, as 8 pessoas da família, na única dependência. Dentro, um calor abafado.
— Mãe, “seu” Tobias diz que num tem mais leite, que o único litro que sobrou tá azedo.
A mãe ouve sem responder. Seu rosto é desânimo, fracasso, derrota. Está com Lairson no colo, o bebê quieto, olhos fechados, como que dormindo. Os outros filhos, meia dúzia de meninos e meninas de diversas idades, ficam por ali, ou atrás da casa, brincando na sombra e na poeira. Há silêncio.
Com movimentos lentos, a mãe molha um pedacinho de pano, um trapinho, na água turva da caneca de lata, e leva à boca de Lair, que suga com força, sem abrir os olhos. Faz isto de tempos em tempos, de tal forma que o garoto sempre está com o paninho na boca, chupando, lambendo o alento de energia que lhe entra pelo corpo.
Pensa que, àquela hora, o marido deve estar já trabalhando. Na “frente”, pelo menos têm comida, e no final da semana trazem algum dinheirinho, que dá para acertar a conta com “seu” Tobias, e comprar mais alguma comida...quando tem comida pra comprar na venda...o caminhão da prefeitura, que vai na capital buscar gêneros, nem sempre volta toda semana...E têm de guardar um dinheiro pra quando chegar o caminhão d’água, o carro-pipa, que esse só enche os tambores de quem paga no vivo, sem “choro nem vela”.
As horas passam . A comida acabou ontem, agora só tem água. Água turva. As crianças não se incomodam. Já se acostumaram a períodos de fome. Se o fogão, no chão da sala, está apagado, elas já sabem: não tem comida. Ficam brincando lá fora, nada reclamam... O neném ainda reclamou um pouco de madrugada, mas agora de manhã se aquietou.
O sol sobe, cresce o calor, a luz aumenta de modo quase insuportável. A poeira não se assenta, fica pairando no ar. O silêncio é total. Não se ouve um balido, um mugido, um cacarejo, um pio. Até as crianças brincam caladas, ensimesmadas, solitárias , mesmo quando juntas .
O sol estava a pino, a luz reverberando no horizonte, o calor insuportável, desânimo no máximo. A mãe sentiu um leve estertor da criança no colo. Lentamente, retirou o pano úmido de sua boca imóvel, levantou a cabecinha até seu ouvido, colocou o ouvido sobre o peitinho esquelético da criança. E teve a certeza de que tinha terminado. Lair não precisava mais do trapinho com água, nem do leite que ficara na venda do seu Tobias. De nada mais precisava neste mundo. Terminava ali aquela curta vida de poucos meses, aquela porção de si mesma, que até poucas horas antes ainda se manifestava, em um choro fraquinho, um vagido, um alento fugaz.
— Vadinho !
O garoto chegou até a mãe, que permanecia estática, com Lair no colo.
— Vai lá na venda do “seu” Tobias. Diz pra ele mandar o caixão de anjinho, que amanhã, quando seu pai chegar, nóis vai lá pagá a conta de tudo...
Uma lagartixa, Vadinho sai...
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte
outubro de 1999
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